As regras para explorar a combinação de uma ou mais tecnologias de geração de energia é uma das evoluções normativas mais esperadas pelo setor de geração, pois existe a expectativa de otimizar o uso e os custos da rede de transmissão. No entanto, os desafios são diversos tanto do ponto de vista da engenharia como da regulação. A boa notícia é que o Brasil está muito próximo de resolver algumas dessas questões, com a perspectiva de termos a regulamentação das usinas híbridas finalizada até o fim de junho deste ano, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
“A gente está com a expectativa de que em 2021 vamos colocar gasolina nisso daí para poder seguir com todas as pautas que venham aprimorar o setor elétrico”, afirmou a diretora da Aneel, Elisa Bastos, relatora do processo em curso, durante a participação em evento online promovido recentemente pela FGV Energia.
A evolução regulatória se torna mais evidente no contexto atual do setor elétrico, em que se discute a redução de subsídios. Na próxima quinta-feira (4), o mercado espera que o Senado Federal aprove a Medida Provisória nº 998/2020, que põe um ponto final aos subsídios concedidos às renováveis e indica a apuração dos benefícios ambientais de cada fonte, entre outros temas também discutidos no texto, como a retomada das obras da usina nuclear de Angra 3, da Eletrobras.
Outro ponto que está no radar dos gestores do setor elétrico é o envelhecimento da rede de transmissão atual, algumas com mais de 50 anos de operação. Esses equipamentos deverão ser substituídos nos próximos anos, movimentando milhões em investimentos.
Segundo o diretor-presidente da VILCO Energias Renováveis, Sérgio Augusto Costa, os primeiros sistemas híbridos de geração surgiram na década de 1970, como alternativa energética frente à crise do petróleo de 1973. A consultoria tem estudado no detalhe as oportunidades de negócios MP segmento. O principal objetivo dos sistemas de geração híbrida é aumentar a confiabilidade do fornecimento de energia elétrica, principalmente para fontes renováveis intermitentes, tais como eólica e solar.
Para ele, a inexistência de arcabouço regulatório específico elimina a possibilidade de aproveitamento das sinergias da complementaridade energética, tais como efetivo compartilhamento da infraestrutura, conexão elétrica, e diminuição na burocracia para obtenção de licenças ambientais e autorizações regulatórias. “Hoje, cada fonte de geração é tratada separadamente, com seus respectivos requisitos regulatórios e de órgãos ambientais. Basta a Aneel regulamentar as usinas híbridas e o mercado deverá responder prontamente com empreendimentos que otimizem o aproveitamento do Capex de cada fonte, visando a maximização da rentabilidade do portfólio híbrido”, disse Costa.
Também presente no debate realizado pela FGV, a diretora de Comercialização e Regulação da Voltalia, Kátia Monnerat, provocou a Aneel pedindo para que “ande rápido” com a regulação, uma vez que é fundamental a definição sobre como será cobrado o encargo pelo compartilhamento do mesmo ponto de conexão entre as usinas.
A Voltalia é uma empresa francesa de energia renovável, uma das pioneiras em projetos híbridos no Brasil. A companhia inovou ao combinar 4 MW de capacidade solar com 12 MW de térmica, na cidade de Oiapoque, no Amapá, totalmente desconectada do Sistema Interligado Nacional (SIN).
“Ela está funcionando. A gente tem muito orgulho disso, pois trouxe para a comunidade do Oiapoque uma melhoria em termos de garantia e segurança no atendimento elétrico”, disse Kátia, sinalizando que a Voltaria tem interesse em investir em energia solar nos parques eólicos que a empresa opera no País. “A única coisa que a gente sabe é que os parques híbridos são muito importantes, com benefícios para o sistema, o consumidor e ao próprio gerador.”
Contexto atual favorece
O mercado já notou valor nesses arranjos inovadores de combinação de fontes de geração de energia, dado o seu potencial de reduzir despesas com encargos setoriais, estimular a competição nos segmentos de geração, aumentar o aproveitamento do sistema de transmissão de energia existente e postergar investimentos em rede. As usinas híbridas também aumentam o fator de capacidade de produção do empreendimento, por exemplo, ao aproveitar o Sol que brilha forte quase todo o ano no Nordeste com os ventos fortes noturnos da região, para gerar energia renovável com mais previsibilidade.
A operação conjunta de fontes tende a superar a operação individual de cada uma delas, porque, de maneira geral, reduz a variabilidade temporal que se observa na geração renovável. Essa otimização acontece nos momentos em que haveria certa ociosidade na rede por causa dos períodos de baixa geração por uma fonte. A geração combinada e complementar pode preencher o espaço disponível na rede.
De acordo com o superintendente adjunto de planejamento de geração de energia da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Gustavo Pires da Ponte, os empreendedores já estão solicitando autorizações na Aneel para o compartilhamento do Montante de Uso do Sistema de Transmissão (MUST).
O MUST é um encargo cobrado pelo uso da rede. Normalmente, os agentes contratam um MUST mais alto para ter espaço no escoamento da energia para momentos de forte geração. Acertar esse número é cada vez mais difícil, principalmente em se tratando de fontes variáveis como eólica e solar.
A EPE também trabalha em conjunto com a Aneel para definir, por exemplo, a metodologia de garantia física dos projetos híbridos. A garantia física é o máximo de energia que pode ser comercializado por uma usina. Também está para ser definida a regra para o corte de energia por opção do gerador e por opção do Operador Nacional do Sistema (ONS). No segundo caso, haverá um encargo para compensar o gerador pela decisão do ONS.
Kátia Monnerat, da Voltalia, disse que as condições de custos de MUST do mercado regulado são tão iguais às do mercado livre. “Está muito difícil atender a todas as necessidades do consumidor final. Não está sendo fácil para os geradores, principalmente eólico e solar, que têm tanta volatilidade em relação ao perfil de geração.”
Desde 2017 a EPE estuda o modelo de usinas híbridas. Em 2019, a Aneel promoveu uma primeira tomada de subsídios com a consulta pública nº 14. Em dezembro, a agência concluiu a CP nº 61 que fez toda a análise de impacto regulatório (AIR). A Aneel usou pela primeira vez técnicas de Design Thinking para atuar nessa regulamentação.
A agência trabalha para abrir uma nova consulta pública para discutir o regulamento ainda no primeiro trimestre. “Nossa expectativa é discutir a proposta no primeiro trimestre de 2021 e ainda no primeiro semestre a gente quer submeter essas alterações normativas ao colegiado da Aneel”, disse a diretora Elisa Bastos.
Risco de subsídio cruzado
Uma preocupação presente na discussão da hibridização é o risco de se criar um subsídio cruzado. A Aneel tem conduzido o processo para permitir a hibridização apenas para novos projetos. Ou seja, vetando a possibilidade de agregar nova usina em empreendimentos que já comercializam energia para o consumidor no mercado regulado.
“Imagine um projeto contratado no ACR [Ambiente de Contratação Regulado], os consumidores pagaram pelo investimento na rede e depois vem a hibridização de uma fonte que vai comercializar no ACL [Ambiente de Contratação Livre]. Esse segundo projeto tira proveito da infraestrutura que foi construída e paga pelos consumidores do ACR. Isso gera a possibilidade de subsídio cruzado, com o mercado livre tirando proveito do ambiente regulado”, alertou o diretor de TI, Relacionamento com os Agentes e Assuntos Regulatórios do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Marcelo Prais.
Para evitar isso, a Aneel propôs restrição à hibridização de empreendimentos já existentes, para evitar gerar efeitos redistributivos. “A Aneel tem como missão trazer o equilíbrio entre os agentes. Quando falamos de empreendimentos existentes, a gente está falando de investimentos que já foram realizados e que já são remunerados considerando um contrato de uso (MUST) já firmado”, justificou Elisa.
A reguladora disse que existem diversas formas de capturar os benefícios das combinações de fontes de geração. E falou no desejo de criar leilões específicos para a modalidade. “Acho que a regulamentação vai movimentar essas discussões sobre as diretrizes desses leilões”, antecipou.
A diretora da Voltalia, Kátia Monnerat, tem entendimento diferente. Para ela, é importante aproveitar as usinas existentes para agregar valor. “Temos que ter muito cuidado na hora de dizer que as usinas existentes do ACR efetivamente bancaram ou ajudaram as usinas novas do ACL. Isso hoje está muito diferente, seja porque estamos trabalhando com preços muito apertados no ACR, porque a cada dia mais os custos de O&M (Operação e Manutenção), de painéis e turbinas estão mais altos com esse nível de patamar de dólar”.